A Floresta Das Almas Perdidas – Terror Luso, Melancólico e Poético.

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Há alguns anos que conheço e acompanho o trabalho do José Pedro Lopes e do Anexo 82. Com uma interessante colecção de curtas-metragens no portfólio, era uma questão de tempo até se aventurarem na produção de uma longa-metragem. O tema só podia ser o terror (o José Pedro é um fã do género e presença assídua no Fantasporto, onde nos conhecemos) e a estreia mundial teria de acontecer, com toda a naturalidade, no fantas. O conceito é o mais interessante possível: inspirado na floresta japonesa de Aokigahara, conhecida como a floresta dos suicidios, José Pedro transporta-a para o norte de Portugal e cria uma delicada e poética obra onde melancólicamente homenageia alguns dos grandes nomes do género.

Um pai de família entra na floresta das almas perdidas, sítio onde as pessoas vão para pôr fim à vida, para, à semelhança da filha mais velha, ali cometer suicidio. Carolina está lá aparentemente pelas mesmas razões. Quando se encontram, estabelece-se uma estranha e interessante camaradagem, onde cada um deles tenta compreender e influenciar a decisão do outro, até Carolina revelar as suas verdadeiras intenções.

Com uma estrutura clássica, onde constam um prólogo e um epílogo, e um eficaz e pragmático twist central, “A Floresta Das Almas Perdidas” é uma revigorante obra de género, principalmente na nossa cinematografia, tão fechada a géneros alternativos, mesmo quando, como é o caso, tem na sua estirpe a melancolia poética tão comum na alma (perdida?) lusa. Este é talvez o factor decisivo para que o filme tenha beneficiado de uma invulgar atenção por parte de publicações internacionais como a Variety, o Bloody Disgusting ou a Rue Morgue, entre outros, aparecendo mesmo em algumas listas de melhores do ano.

José Pedro Lopes consegue, com um argumento simples e despretencioso, criar uma sensível galeria de personagens tridimensionais, fundamental para sustentar a narrativa e criar uma forte ligação com o espectador. Há também um enorme cuidado na caracterização dos seus actos (principalmente os de Carolina), que prolonga para lá da duração da obra a sua assimilação. É portanto um filme que, além de entreter, coloca questões profundas, poéticas e/ou filosóficas, mas sobretudo humanas.

Tecnicamente, e tendo em conta que teve um baixo orçamento sem subsídios, o filme é um prodigio na gestão de recursos. A fotografia de Francisco Lobo é maravilhosa nos enquadramentos, na exposição da narrativa, no sublinhar de intenções e imprime-lhe o tal tom melancólico e poético que atravessa todo o filme. O preto-e-branco funciona muito bem, mas é talvez o único ponto negativo na obra. Sinto que lhe falta um pouco mais de contraste, e talvez o uso pontual de cor, para ter mais dimensão, diversidade e dramatismo.

O desenho de som e música de Emanuel Grácio é perfeito na gestão de emoções e sabe respirar e imprimir ao filme o ritmo certo nas suas diferentes fases. Consegue a proeza de iluminar pormenores, elevando-os ou destacando-os da composição gráfica. A montagem de Ana Almeida é pragmática e meticulosa ao mesmo tempo, criando por vezes belíssimos efeitos de composição, nunca se desviando da fluidez da narrativa. Último destaque técnico para o belíssimo trabalho de stop motion nos créditos iniciais, da autoria do estúdio Creatura. Consegue recriar o ambiente natural do filme reduzindo-o a um microcosmos de texturas artificiais animadas com subtileza e precisão.

Nas interpretações, o destaque vai obviamente para Daniela Love, que cria uma surpreendente psicopata com muitas camadas e intensidades, gerando humor e tensão alternadamente e sem deixar nunca espaços nas transições. Jorge Mota acentua a segurança a que já nos habituou, mas polvilha o personagem com fragilidades e dúvidas, aproximando-o do espectador. Lília Lopes, Mafalda Banquart e Lígia Roque compõem a restante galeria de personagens de forma simples, cuidada e solidária.

Quanto a José Pedro Lopes, na sua estreia nas longa-metragens, prova que continua em franca evolução como autor, usando as suas referências em prol das suas criações, sintetizando-as e reagrupando-as por forma a construir algo novo e fresco num panorama autoral apático que só pode beneficiar desta franqueza e objectividade.

Pena é que por cá não se tenha dado grande atenção a esta obra. Que por causa de interesses financeiros e comerciais obscuros, por parte de distribuidores e exibidores que preferem apostas seguras e pouco criativas, o público teve o filme em sala durante muito pouco tempo, só o podendo ver actualmente nos videoclubes das operadoras ou em filmin.pt. A única forma de se comprar o filme é recorrendo à Last Exit Entertainment, editora sueca que tem a única edição em DVD prevista para o filme.

E é uma excelente edição. Para além do filme, temos 3 outras curtas do Anexo 82 (“Survivalismo”, “A Tua Plateia” e “Noite de S. João”), comentário audio do realizador, entrevistas ao realizador, director de fotografia e actriz, cenas apagadas, galeria de fotografias, excerto da banda sonora, trailers, etc. Podem encomendar esta edição aqui.

Resumindo, “A Floresta Das Almas Perdidas” é um belíssimo filme de género que acaba por transcender o próprio género. É uma reflexão sobre a condição humana, sem deixar de ser entretenimento despretensioso. É um passo importante na evolução de um autor a quem deveria ser dada mais atenção. E é, para mim (e para muitas publicações estrangeiras), um dos melhores filmes de 2017.

Classificação: 4.5/5

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