Anaquim – “As Vidas dos Outros” (Que Somos Nós).

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De vez em quando, surge uma daquelas bandas que funcionam como uma lufada de ar fresco no panorama contemporâneo da música portuguesa. Não mudam nada nesse universo estático e acomodado, mas ocupam o seu espaço, lembrando-nos que há ainda certas áreas que podem e devem ser exploradas. O último caso que me vem à memória são os Deolinda, cujo estrondoso sucesso foi uma excepção no que geralmente acontece a quem envereda pela música dita mais popular, relegada para um nicho obscuro e interdito às ondas da TV e rádio (salvo raras excepções).

Agora chega a vez dos Anaquim, banda de Condeixa com um pé na música popular e outro no imaginário popular colectivo, que resulta num conjunto de crónicas musicadas sobre o país ou o amor, as vidas dos outros ou a morte de qualquer um, do microcosmo pessoal e bairrista aos conflitos sociais e universais desta sociedade que além de ser deles é nossa.

Anaquim começou por ser o pseudónimo de José Rebola, que se rodeou de excelentes músicos e amigos para dar forma a um conjunto de canções pessoais mas tão transmissíveis que qualquer um que as ouça pode tratá-las como suas. “As Vidas Dos Outros”, “A Minha Rua” ou a fantástica “Lusíadas” são já êxitos explorados pelos média, mas que nunca é demais ouvir. Fazem parte do seu álbum de estreia, lançado há largos meses, e que merece melhor sorte comercial do que aquela que tem tido até agora. Rebola, nas palavras do próprio, explora em 14 canções (mais um prólogo e um epílogo) aquilo que o preocupa, os seus problemas e angústias, de uma forma tão descomplexada e festiva que as torna irónicas e ainda mais verdadeiras.

Essa ironia é patente em praticamente todas as letras do disco. Rebola é exímio no manuseamento da língua que é a nossa, criando pérolas como:

‘Sacrifico minha vontade, por um tiro no escuro que nos deixa sós

Custa ver que na realidade o tiro não foi no escuro o tiro foi em nós

Não pretendo não fazer erros, vou aprendendo com o mal que trago em mim

E se aprendo sinto-me gente, que só é gente quem consegue ser assim’

Ou:

‘Gosto tanto deste país, só não entendo o que o faz feliz

Se é rir da miséria de outros, quando a vemos

Ou chorar da nossa própria, quando a temos

Gosto tanto deste país, só não entendo quando ele se diz:

Senhor de um futuro maturo, duro mas seguro

Eu juro que ainda não o vi’

Ou ainda:

‘Eu não acredito que seja abençoado

Se alguém me enfeitiçou foi o próprio diabo

Coitado! Que feitiço tão mal empregue…

Podia tê-lo guardado para o Sr. Que se segue

Leva a tua avante que eu levo a minha cruz

Troco o masoquismo por alguém que me seduz

E a luz, que nunca chega a ser a minha

Ofusca nos momentos em que a razão me convinha’

A música que acompanha estas palavras é viciosa e viciante, algures entre o popular e o pop/rock, pragmática mas não ocultando virtuosismo, com convidados que ainda a enriquecem (como Ana Bacalhau, reforçando ainda mais o paralelismo com os Deolinda). Acima de tudo, “As Vidas Dos Outros”, o disco, é um magnífico divertimento, com alma e sinceridade, consciência e alguma maldade, que também pode fazer pensar e reflectir, se assim o quisermos. Aconselho vivamente a sua compra (custa menos de sete euros na Fnac), pois nunca é demais valorizarmos música portuguesa desta qualidade.

Classificação: 4.5/5

As belíssimas fotografias que ilustram este artigo são da autoria de Rita Carmo.

Deixo-vos ainda um tema extra: uma versão do genérico da série infantil “As Aventuras De Tom Sawyer“, que infelizmente não dirá muito aos mais jovens, mas que fez as delícias da minha geração. Esta tema, que faz parte do alinhamento dos espectáculos ao vivo, foi a contribuição dos Anaquim para a edição deste ano da Missão Sorriso. O disco da Leopoldina, que está à venda nos hipermercados Continente, contém músicas infantis interpretadas por Deolinda, Ana Moura, The Legendary Tiger Man, Pedro Abrunhosa e os grandes Xutos & Pontapés, entre outros. Comprem-no, é por uma muito boa causa.

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