“Fish Tank”, a Transparente Claustrofobia.

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Aquário“, da oscarizada Andrea Arnold, é o filme independente de 2009 mais premiado até ao momento. 16 prémios internacionais, incluindo o Prémio do Júri em Cannes, o Bafta para Melhor Filme do ano, melhor filme na Semana dos Realizadores do Fantasporto, e muitos outros prémios para filme, realizadora, argumento, actriz e actor, fazem deste um filme imperdível para qualquer cinéfilo. E, antes de me dedicar à crítica propriamente dita, devo expressar aqui o meu descontentamento e surpresa com o facto da distribuidora o ter em exibição em apenas 1 (UMA) sala no país. Quando essa mesma distribuidora tem 5 salas no Porto e outras espalhadas por outras localidades, isto é uma enorme falta de respeito pelo filme e seus intervenientes, mas sobretudo pelos espectadores que apreciam bom cinema alternativo e não se podem deslocar a Lisboa para o apreciar. Não fosse o Fantasporto, e a Internet seria a minha única alternativa. Depois queixem-se. Posto isto…

Mia é uma problemática adolescente de 15 anos. Vive num bairro social com a mãe, desempregada, alcoólica e carente, e a irmã mais nova. Expulsa da escola e marginalizada pelas amigas, encontra na dança e no hip-hop o seu escape para uma realidade opressiva. Um dia, a mãe leva para casa o novo namorado, Connor, um homem que mora com a mãe e é reservado quanto à sua vida pessoal. Entre ele e Mia vai criar-se uma estranha cumplicidade, que precede acontecimentos que vão ter repercussões no seu núcleo familiar.

“Aquário” é um filme próximo da perfeição, que lida com temas sensíveis e controversos, mas cujo realismo intencional torna tão envolvente e viciador. A forma como Arnold monta o filme é verdadeiramente imprescindível para este propósito. Câmara ao ombro, formato 4:3 e uma proximidade ao objecto filmado que nos aproxima impiedosamente da acção. Com um argumento simples de sua autoria, a realizadora vai desconstruindo o filme, mas sobretudo a personagem de Mia (fazendo o mesmo mais tarde com Connor). Cedo se percebe que Mia age como age  por ter sido forçada a criar mecanismos de defesa que lhe permitem ultrapassar um ambiente familiar degradante: uma mãe autoritária, sem sentido do que implica a educação de um filho, vocabulário ordinário, agressividade constante, preguiça, egoísmo, problemas financeiros, etc. Mia combate o fogo com fogo, mas no fundo procura um escape. Primeiro, através do hip-hop e da dança, que pratica às escondidas num apartamento devoluto. Aquilo que lhe dá prazer não é para ser partilhado. Até aparecer Connor.

Connor não só não é agressivo com Mia, como parece invulnerável à sua agressividade. Mia falha em provocar distanciamento e acaba por também se aproximar de Connor. Essa aproximação é feita, mais uma vez às escondidas, longe da mãe e da irmã, que lhe segue as pisadas no que diz respeito ao feitio. É com ele que ela partilha os seus sonhos e as suas expectativas. E ele retribui com atenção, respeito, carinho e cumplicidade. Aquilo que ela sempre procurou. Até ele aparecer ela andava perdida, às voltas numa transparente claustrofobia, o tal aquário do título. Ele personifica a vontade e o empenho que lhe faltavam para poder quebrar o vidro e emancipar-se, distanciando-se da realidade que a aconchegou de forma tão sufocante. Quando Connor parte, deixando a mãe de Mia, ela sente-se novamente perdida e sufocada, partindo atrás dele, apenas para descobrir uma realidade tão diferente da que esperava. E da desilusão nasce, além da agressividade natural de Mia, a força necessária para perseguir os seus sonhos.

Para uma estória tão visceral e autêntica, é importantíssimo o desempenho dos actores. A estreante Katie Jarvis é de uma intensidade e naturalidade desarmantes. A directora de casting descobriu-a numa estação de comboios, a discutir com o namorado, e viu nela a força procurava para Mia. É, para mim, a revelação do ano até ao momento. Michael Fassbender, depois de “Hunger” e “Inglorious Basterds“, continua a provar ser um dos mais promissores actores da actualidade. Só nestes três filmes, com características e exigências diferentes, mostrou estar perfeitamente à vontade em todos eles. As secundárias Kierston Wareing e Rebecca Griffiths são também fantásticas, como a mãe e irmã de Mia respectivamente.

Mas é a realização de Arnold que torna este filme imprescindível. A atenção aos detalhes é primorosa. Ao nível da fotografia por exemplo, a quase totalidade dos planos só contempla dois tipos: aqueles que mostram Mia e aqueles que mostram o que Mia vê. Essa fixação intencional consolida ainda mais a metáfora do aquário. Como um peixinho vermelho a nadar em círculos, só há duas direcções para o olhar: o de dentro para fora e o de fora para dentro. A câmara personifica essa dualidade claustrofóbica, dando uma intensidade extra ao filme, tornando o espectador parte dele.

Resumindo, “Aquário” será certamente um dos filmes do ano. Centrado nos mesmos temas de “Precious“, (exclusão social, mau ambiente familiar, abuso, agressividade, etc.) prova que se conseguem abordar temas intensos e realistas sem se cair no melo-dramatismo barato e tele-noveleiro de circunstância. É um filme a ver e deveria poder ser mais visto. Senhores da Medeia, vejam lá isso, se fazem o favor.

Classificação: 5/5

1 comentário em ““Fish Tank”, a Transparente Claustrofobia.”

  1. Um filme dramático cujo retrato é muito cru e realístico, mas pleno de sensibilidade, coloca os factos com clarividência mas não julga (fica a tarefa para o espectador), conduz-se gradualmente tocante e torna-se marcante toda esta história.

    A Katie Jarvis, não sabia que não era actriz, mas ela fez um papelão, carregando o filme às costas em grandes performances e conseguindo iludir que tem mesmo 15 anos, pois por vezes parecia mesmo uma menininha adolescente (e nas cenas em que dança e briga com as amigas rivais… parece mesmo) e quando foi necessário mostrou-se parecer mais adulta (na cena da festa da mãe em casa dela – quando a vemos ausente do seu “traje” habitual do di-a-dia).

    Gostei bastante desta critica e há aí uma observação muito boa e que nem tinha reflectido. Realmente o filme tem dois pontos de vista para a camera, tal como num aquário (que acaba por ser esta rapariga): os planos ou contêm a adolescente (visão de fora do aquário) ou o que ela vê (como se fosse a visão externa, de dentro para fora). Bem visto!

    Muito Bom o filme. 8/10

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