“Puro”: Xutos & Pontapés, 35 anos.

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Antes de mais nada, parabéns aos grandes Xutos & Pontapés. 35 anos de vida ‘conjugal’ não é para qualquer um, principalmente com os níveis de companheirismo, entrega e vitalidade sempre no topo. Prevê-se um ano em grande para os Xutos, que arranca com o lançamento do 13º álbum de originais “Puro“, disponível hoje, 13 de Janeiro, dia de aniversário, depois de ter estado uma semana em escuta no Music Box. Depois de já o ter ouvido mais de uma dezena de vezes, confirmo que é mais um excelente registo, apesar de ser suspeito, pois todos conhecem a minha devoção incondicional à banda. Mas “Puro” é isso mesmo, um objecto de devoção a uma carreira que não cansa de se reinventar, adicionando à rebeldia inicial a atenção crítica sobre a actualidade e a partilha da sabedoria de vida conquistada ao longo dos anos e passada de geração em geração, aquelas que se mantém e as que aparecem e se juntam ao culto do rock e da vida.

Olhemos para o dicionário e a sua definição de puro:

pu·ro adjectivo

Sem mistura; límpido; genuíno. Virginal; imaculado; inocente, casto. Verdadeiro; exclusivo; natural; único. Sincero; suave. Mero; vernáculo. Correcto, irrepreensível. Mavioso. Incontestável. Fiel, exacto. Que ainda não foi corrido (touro).

As 10 canções que o compõem formam um todo que é tudo isto (sim, mesmo no sentido tauromáquico). Nas primeiras audições há, obviamente, canções que sobressaem por uma razão ou outra: “Cordas e Correntes“, “De Madrugada (Tu & Eu)“, “Da Nação“, “Salve-se Quem Puder“, “O  Milagre de Fátima” (a minha preferida, que anseio por ver ao vivo e fazer parte do coro de milhares que cantarão: ‘Ninguém pára a irmã Lúcia, ninguém pára a irmã Lúcia, Oh Eh‘), além do primeiro avanço “Tu Também“. São canções na tradição dos Xutos, com reflexões semi-abstractas sobre a vida, sobre o individuo em busca do seu lugar na sociedade, não esquecendo a ironia perante a contrariedade, seja ela qual for.

Outras há que, fazendo jus à máxima de Fernando Pessoa, requerem algumas audições para se entranharem. Neste caso, destaco “Um Deus“, com uma letra dura e pouco musical (estranha-se a falta de rima, até se perceber que é propositado), que vai desfiando um desespero, a procura de uma saída, mesmo que seja a menos lógica. E depois há o apontamento de situações reais em que se privilegia o registo sem filtro, sem abstracção, sublinhando a atenção ao que nos rodeia, seja para apoiar e condenar ou ironizar. O caso do Bairro do Lagarteiro em “Ligações Directas” ou o flagelo da emigração em “A Voz Do Dono” espelham as duas faces desse apontamento. Claro que tudo isto é envolvido num rock sólido e maduro, assente em guitarras harmoniosas, baixo penetrante e batida mais ou menos frenética mas sempre segura, com apontamentos imprescindíveis de saxofone ou piano, mas sobretudo que espelha o espectro musical dos Xutos, desde o Punk que os viu nascer até ao rock actual, mais trabalhado e irrepreensível.

Por último quero destacar algumas passagens das letras do Tim, que aqui consegue ser mais abrangente e directo do que nunca:

“Acabas por viver / acabas por amar / Nessa terra cinzenta / tão longe do teu mar / Mas nem tudo é mau / a vida acaba por sorrir / Tu trabalhas no duro / e tens um filho a nascer / outro a crescer / Onde é que eles foram? / Onde é que eles estão?” (in “Da Nação”)

“Quando o carro não andar / Quando a gasolina acabar / Quando a luz se apagar / Quando a torneira secar / Quando a rádio emudecer / Quando a tv deixar de dar / Quando a rede desaparecer / e o teu telemóvel não te chamar / A guerra já começou” (in “Salve-se Quem Puder”)

Que se cante o fado / que se louve a saudade / Este país quer mais futebol / Que se ponha a mesa / na casa portuguesa / a beliscar bem o anzol / Assina aqui, é pró milagre de Fátima / com sorte ainda te calha uma beca / A virgem paira sobre a tua cabeça / felicidade é consequência directa” (in ” O Milagre De Fátima”)

Dá-me um cigarro / ’tou todo marado / outro dia mau acabou de nascer / Se não nos pagam o ordenado / nós só podemos continuar a dever / Vão-se fazendo ligações directas / numa espécie de desafio ao poder” (in “Ligações Directas”)

“E um pouco mais acima / depois da loja do chinês / O café fechou de vez / morreu de ASAE e excesso de IVA / Eu ando a passear o cão / o cão é do meu irmão / emigrou para o Tibete / faz-lhe festas pela Internet” (in “A Voz Do Dono”)

Resumindo, “Puro” é os Xutos & Pontapés de sempre no seu melhor, com ainda mais abertura à sátira social e política, à sociedade e suas injustiças, não descurando o individuo e o sonho ou amor que o move. E é também a prova que os Xutos de hoje são mais maduros e complexos que os de sempre, mas suficientemente frescos e carismáticos para continuar a encarar o amanhã.

Classificação: 4.5/5

“Puro” vai poder ser ouvido ao vivo no concerto de comemoração dos 35 anos, dia 7 de Março no MEO Arena, em Lisboa.

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